31/01/2011

palavras e imagens por alexandre santos

Qual é a conexão entre uma mulher que cai na gargalhada quando repete a palavra rocambole, um andarilho que tira a roupa e defeca numa viela, um rapaz apaixonado por uma falta de charme febril, um buquê de rosas desbotadas, uma mulher com olhos de peixe que teve o útero extirpado, um filho mais velho que o pai, uma mulher que só sabe contar até sete, uma cabeça em forma de gota, uma mulher que vomita fezes, uma criança salva por seres tão minúsculos que o fogo no peito é todo o corpo, um estômago que não interpreta suas peculiaridades mais básicas, um soldado salvo pela sua bexiga, um homem desenterrado por uma pergunta, uma mulher com uma espécie de aroma ausente? Entre outros mais tão iguais a você e eu.












Borboletas amarelas


I

Sopro esgueirando pelos confins mais remotos de sua escuridão entremeia-se sorrateiro. Germinando vagarosamente até se deparar com a possibilidade de vazar para a superfície. Sua resposta a qualquer toque rivaliza com a involuntária reação perante brasa que chamusca carne viva. Pele é tenra escama fincada por nervuras que vão se afundando carne adentro. Não mais há discernimento quanto à distinção de dedos, onde tudo é parte de um pé de sola grossa aparentemente incomunicável. Dedos das mãos são garras recurvadas, longas e afiadas. Inchaço oval dentro de vestes inconvenientes e em frangalhos. Guelras se abrindo e se fechando ininterruptamente em um pescoço que se estica e se contrai, dependendo da sensação de perigo e de prazer aguçando a corrente sangüínea. Cabeça em forma de gota com uma única antena tremulando no topo. Olhos sem pálpebras visíveis, ligeiramente apontados para fora e de um negrume azulado.

Sem virar o rosto a mulher ao seu lado oferece-lhe pipoca. Ele não compreende o real significado deste ato. Abrir e fechar de garras arremessa cabeça para longe. Longos cabelos louros esvoaçados. Guaraná desperdiçada pelo carpete. Cavidade na parte inferior do rosto se assemelha à da forma humana. Língua afiando-se para dentro e para fora. Glândula estrategicamente dispersa no céu da boca lança líquido digestivo sobre a mulher. Desenrola-se em curvas ainda mais agitadas. Ele pára abrupto quando seus olhos se fixam na aliança. Bela mulher sorridente pedindo que feche o zíper de seu vestido; já está tarde, com este transito pode ser que percamos o início do filme. Toca a mão de dedos espetados com afeto, expondo-se a um embate de estranhezas. Náusea incha. Negrume azulado dos olhos cintila.

A parcial escuridão da sala de cinema não impede que o homem sem bigode se espante com a cabeça de olhos esbugalhados, arremessada na poltrona ao seu lado. Antes mesmo que pudesse exprimir todo pavor dali saltado, movimentos e resmungos bizarros fazem-se nítidos bem diante de seu hálito. Recua de medo. Imagina-se parte integrante de alguma piada de extremo mau gosto. Alguém usando uma máscara inacreditavelmente inusitada e disforme. Mãos apertam o braço da poltrona como força. Imagem surgindo da tela é paisagem empalidecida. A criatura pendula a cabeça e esbraveja grunhidos ecoando tal qual berro lacrado que esguincha por fendas. Salta fileiras de poltronas rumo ao luminoso indicando toalete, logo abaixo da tela.

Caminha confuso. Braços bailam desossados, garras ancoram-se arredias em miragens. Pescoço estica com olhos vidrados na tela. Vacila na direção da imagem de uma mulher. Quanto mais perto, mais a imagem escapa. Toca a tela inteiramente branca. Minúsculos pêlos revestindo o dorso arrepiam ininterruptamente em todas as direções. Odor azedo defuma o ambiente. Abaixa os olhos sem a possibilidade de fechá-los. Guelras esbaforidas. Escapa-se do brancor da tela. Não consegue girar a maçaneta da porta. Fiapos de estalido agudo arranham tímpanos enfiados na raiz da antena. Arremessa-se com tremenda violência contra a porta. Uma, duas, três vezes. Porta à beira de ceder. Outra vez. O estrondo da madeira sucumbindo no piso e a luz invadindo a penumbra da sala chacoalham espectadores ainda atentos às cenas projetadas na tela. Claridade pesa sobre seu corpo. Braços arredios almejam proteger olhos que ardem sem lacrimejar. Luz descascando-o como se vento forte tentasse impedi-lo de entrar. Caminha com dificuldade. Perturba-se na frente do espelho. Assombrado. Espectro exprimindo fúria interminável. Vigorosa lucidez assalta-o inquieto. Seu coração por pouco não agüenta a exigência de seu desespero. Cai como que empurrado por um violento murro. Frenesi em seu corpo provoca arrepios na pequena platéia dispersa pela porta. Salta várias quedas de um peixe fora d'água. Ossos amaciam rasgos pela carne. Marionete controlada pela ferocidade abismal de um tufão. Já quase todo descascado. Miséria em seu rosto é o diabo. Súbito mumifica-se encrespado. Espatifado. Da mão entreaberta escapole a aliança dourada. Espiralando pelo chão. Recompõem-se em pausas, apreensivo, cheio de incertezas. No espelho a representação humana é mero pretexto. Sombra silenciosa. Como um sonâmbulo enfia-se pelo amontoado de pessoas. Rasgando penumbra. Vestindo farrapos. Pés nus.




II


Já faz alguns anos que se arrisca por aí. Não olhou para traz. Saiu de carona. Cruzou fronteiras. Provocou a si mesmo só para ver até que linha limite manteria o foco. Dormiu em alpendres, rodoviárias, esquinas. Conheceu os malucos das rodoviárias infernizando aqueles que desejam ficar tempo demais pelos bancos. Na verdade são contratados, de carteira assinada e tudo. Tem dias que é praticamente impossível encontrar um lugar para descansar, nem que seja só por alguns minutos. Nestes dias lança-se ao desafio de ser audacioso o suficiente a ponto de conseguir superar as fisgadas nas costas. Mostrando ao mundo que; meu cheiro não pode ser igual ao de ninguém. O perigo de desafios como estes é que com o tempo impregna-se do cotidiano das ruas. Com o avanço das madrugadas não percebe ou não se importa com o lodo no canto dos olhos, o ar sombrio, a micose nas unhas dos pés, as cicatrizes subindo pelas pernas e em torno da glande.

São tantos tipos de acontecimentos de me tocar; agora o homem balbucia bem mais alto. Pra quem quiser ouvir. Alucina obedecendo vozes fantasmagóricas. Rosna palavras desorientadas com a bochecha grudada no poste. Cheiro de carne apodrecendo incomoda-lhe os olhos. Apesar de que por tanto tempo vivendo assim já deveria ter se acostumado ao que a fermentação desenterra. Vermes permitem que se pense pelo habitat de vermes. Cala-te tu, verme. Será que algum dia cuspirei farpas cortantes?; acrescenta com voz embaraçada pelo acumulo de catarro.

Do negrume escorre imagens ininterruptamente. Recordando situações que não mais sabia de sua existência. Chega a duvidar. Só na imagem que as mãos não atingem é que há umidade; rosto de profeta maltrapilho que acaba de acordar do calor no deserto. Comendo somente o necessário para que o saco nas costas não se torne pesado demais, para que a via de contato com o molhado da vida não se entupa - resmunga.

Meninos se apertam logo atrás do poste que o homem do saco escora. Neste aconchego ensolarado pelos lados, o homem do saco se protege de ardumes na pele. Um dos meninos engole seco, alcança a pedra exposta ao sol, prende a respiração, estica os olhinhos fechando o ponto da mira. Esmurra o braço pelo ar espetando a pedra na nuca arroxeada. O homem do saco vomita palavras para dentro. Arrota caretas em largos passos desarranjados. Desequilibra e tropeça violentamente. As crianças amolecem umas nas outras com alegria apavorada, alisando olhares à beira de gargalhadas asfixiantes. Ziguezagueiam pernas em fuga.

O homem do saco refugia-se embaixo de uma árvore. Uma das mãos esfregando com sofreguidão os lábios molhados. Miragem? Poucas vezes encontrou tamanho conforto. Demora pra acreditar. Seria mais uma armadilha? Pés nus pousam com grande satisfação sobre um grosso carpete de pétalas amarelas. Sem o corriqueiro desespero constata o quanto sua visão tem paulatinamente regredido. Só se sente realmente seguro depois de uivar para corações subterrâneos. Orquestra com euforia a queda de cada flor. Saindo dali somente quando o espetáculo acaba de vez. No decorrer das estações espera inquieto. Todo ano, apesar dos riscos, o homem do saco retorna à arvore no exato momento em que o espetáculo acontece.




III


Rapazes afundam em pontapés as costas do homem do saco de pele curtida de imundice. O maculado colarinho da camisa se confunde com a própria pele. Seu merda fedorento, até hoje não aprendeu a aliviar-se sem se cortar?; berra um deles. Sua voz já não causa arrepios de medo; meu fedor é o que menos fura-me remorso. Ri gengivas enegrecidas e esburacadas. Arrancam seu saco esparramando panelas acinzentadas, pontas de cigarro, sapatos, jaqueta jeans, chaveiro com chave, colher, pétalas secas, garfo, livro, canetas, gravetos, copo de metal, edredom. Que vocês encontrem a epidemia de acordar enterrado; excomunga desvencilhando-se. Uivos masculinos entocam o homem sem saco na curva sem volta da viela. Repete medonhas caretas nas quais os rapazes cospem pedras e tríceps estufados.

O homem sem saco arranca a camisa e em pulos alados dança um círculo de proteção. Tira a calça, iluminando a viela de um azulado ossudo, um pênis embolado em meio a enormes fios de cabelo. Dobra os longos talos finos com bolotas de joelhos até quase tocar no chão as bandas despencadas da bunda. Lentamente expulsa em espiral um pedaço longo de merda tão fedorenta que nem as trincheiras do inferno ousam competir. O homem nu agarra a merda com as duas mãos, profere algumas palavras com olhos revirados e avança como uma feroz agulha magnética na direção das zombarias.

Dobra os joelhos mais uma vez com veia inchando bem no meio da testa e expulsa o último pedaço de merda, sem peso suficiente para despencar pelo vão entre a bunda e o asfalto. Com o dedo indicador pega o gordo pingo dependurado. Arqueia-se vitorioso. Aponta o dedo espetando ultimatos em cada corpo. Não importa se é lua cheia, a razão jamais foi capaz de banir a escolha; desentala por fim. Está prestes a invocar mais energias protetoras quando levanta os olhos em admiração. Árvore entupida de flores caindo em cascata. Abre os braços em rodopio e ri; somente pessoas como eu é que podem ser beijadas por borboletas amarelas.



IV


Não adiantou nada atravessar os meses. Não adiantou nada jogar as pétalas no mar. Não adiantou nada batucar pro anjo redentor. Não adiantou nada ir ao dentista e fazer a barba. Não adiantou nada ficar mudo. Não adiantou nada chegar na hora. Não há mais cachorro latindo no jardim. Não há mais rua. Não há mais casas. Não há mais calçada. Não há mais coisa alguma quando o homem sem saco chega. Duvida de sua orientação. Seguindo o arrepio avança pelo acúmulo de lama e entulho até o impedirem de continuar. Justo agora. Chuva caiu torrencial como nunca haviam presenciado e o rio transbordara em correntezas enfurecidas. Arrastando geladeiras, telhados, gatos, computadores, gavetas, violões, galhos, homens, álbuns de fotografia, bebês, cadeiras, folhas verdes, carros, travesseiros, meninos, ursos de pelúcia, tomadas, insetos, bicicletas, caule, fones de ouvido, flores amarelas, mulheres, celulares, câmeras fotográficas, lagartixas, raízes. Se por algum motivo tivesse chegado uma hora antes, também teria sido levado.

Por dias e noites ajudou nos resgates. Sempre ouvindo o vento. Fosse noite ou dia descia à escuridão ignorada. Desespero humano cavando nele a expressão transtornada do louco que, por Deus, jurava já ter sido atingida. Para logo depois ser superada. Ele também é um sobrevivente, apesar de não estar enfiado debaixo desses e de outros escombros. Pelos dias encontra outra árvore, só que a algazarra também não está mais ali. Lembranças afagam para depois esmagar. Agarra-se ao fôlego e decide jamais voltar pela viela de sempre. O homem ajeita a mochila nas costas e estende-se pela correnteza do horizonte ensolarado.












Centelha



A cada minuto que passa, seus últimos momentos de toque ficam mais e mais distantes. Desgasta-os ao máximo possível. Entre outras artimanhas, para que de súbito não se jogue do meio-fio, ou não deixe de levantar a cabeça pelas calçadas, aquece-se dentro dos ônibus lotados enquanto vai e volta do trabalho. “Eu quero sempre um instante antes”, murmura sem que de imediato se dê conta do dito. Para logo em seguida esquecer e ficar com essa cara torta. Com certa luz do Sol seu rosto fica tão nítido que é como se a janela fosse um espelho. Gosta do jato de ar quente que sai de alguma narinas, ricocheteia no braço tão perto dos seus cílios e umedece uma fisgada da face. Muitas das vezes permanece com o olhar fixo em algo que merece nome, mas não sabe dizer exatamente o que é. O rosto que acredita ser seu é em verdade alguém que quase como que entra pela janela aberta, atravessando de um lado a outro numa vibração úmida. Lábios grudados de febre.

A mulher grisalha suga o nariz garganta adentro e enruga a testa. “Amiga, nem sei como dizer, nem sei como falar”. Mastiga as lágrimas que entram pelos cantos da boca. “Com essa doença ele me olha como se nunca tivesse perto. Sabe assim?”. A amiga permanece fincada no banco, com braços afundados pra dentro, obsessivamente estática. Uma mulher levanta a blusa e mostra os vergões avermelhados. “Você vai morrer hoje. Te furo se não passar o que tem”. “Que horror”, balbucia a amiga olhando pra barriga mole e saltada pra fora. “Não sei como escapei. Só sei que quando tentei sair dali e não consegui, rasguei um grito esquisito. Foi estranho menina, eu parecia uma minhoca berrando no cimento. Saí correndo quando me deu folga. Você precisava ver a cara de susto dele”, finalizou ela gargalhando desvairada até engasgar e vomitar nos pés da amiga. “Você é cristão?”, pergunta o rapaz com cheiro de amêndoas. “Então você sabe que o fim do mundo está perto”, afirma apontando para o céu azul com nuvens tão brancas quanto seus dentes. “Tão perto quanto teu hálito do meu?”.

Há uma artimanha que apesar dos anos concecutivos, estranhamente intermináveis, continua bem mais difícil de até mesmo cogitar. Quando ela vem ferindo-lhe solavancos, a música que atravessa pelos fones de ouvido soa como se não houvesse som. A vontade de pele é tão imperiosa quanto os dedos sem digitais percorrendo-lhe cada pedaço de cheiro. Em dias dessa artimanha, por alguma espécie de tempo indeterminado, alguém espreme o calcanhar pelo peito de seu pé. E ali permanece quieto, pesando. Esquinas íngremes, axilas quase esquecidas, cabelos gelados de chuveiro matinal, enquanto o olhar orbita sem culpa. E já que quer provar ao mundo inteiro que não desiste tão fácil de seus sonhos, então tolera as fisgadas de ranhuras pelas unhas rachadas de doença opaca até não mais saber suportar. Orgulha-se de nunca ter cutucado um gemido sequer. De súbito vê uma velhinha bem decrépita, de dar dó mesmo, tentando subir as escadas pela porta de trás. Ele alça os sacos de supermercado. A velhota suspira aliviada e escala os degraus com tremores nas pernas e nos braços. Espetáculo de dar arrepios.  Ergue o rosto com dificuldade e olha para o homem curvado na direção de um dos sacos. Sua expressão facial se contorce diabólica, exuberando os fundos sucos de sua pele ressecada. "Você acha que tá bonito com essa merda de brinco? Jesus não gosta disso.". O rapaz olha-a abismado. "Não me olhe assim. Só quero te ajudar.". "Eu também.", diz o homem jogando os sacos nos degraus. No momento mesmo em que algumas pessoas descem no ponto. "Porque você não bate uma centelha com ele?”, retruca a mulher de seios fartos esbaforindo-se escada afora. Atravessando a faixa de pedestres com seu calcanhar curvado para dentro. Enquanto isso respira aliviado - pela porta destampada da frente sua expectativa se revigora. Interminável esse jato de batimentos cardíacos com olhares furtivos, pele de algum dedo tocando pele de algum dedo. Revoada de pétalas vivas de epiderme estremecendo arrepios saltados dos solavancos que aquecem e são aquecidas.

Pela porta destampada da frente sua expectativa se revigora. Interminável esse jato de batimentos cardíacos com olhares furtivos e soltos, pele de algum dedo tocando pele de algum dedo. Revoada de pétalas vivas estremecendo pelas curvas que aquece e é aquecida.











Viagem às profundezas


Você já amou na sua vida? Não faz nem uma semana que trabalham no mesmo lugar. No entanto, foi suficiente para sentir-se a vontade e perguntar. Quem sabe os vestígios são por demais gritantes e a pergunta surgiu como água minando da fonte? Não há como negar que ele ficou abalado. Tremor que veio como um baque, intensificando-se em curiosidade na mesma medida em que o som da pergunta alongava-se para longe. Sim, já amei; responde rapidamente. Quase num murmúrio.

O rapaz... quer dizer... o homem olha-a surpreso. Além da pergunta, sua idade desaba sobre ele. Algo revirando incômodo. Como assim? Por que viu isso? Saltos dentro do peito atrapalhando a garganta. Pasmo. Não sei, sinceramente não sei; responde desviando o olhar. Inteiramente surpresa com sua reação e sem a menor vontade de discorrer sobre as evidências.

Amou? Quais seriam os indícios que o fariam ter certeza que amou? Vontade de ficar perto e a gravidade da angustia no ato da separação! No correr do relógio estranhamento prossegue revolvendo indisposição. Só bem mais tarde, na parada de ônibus, com olhos dispersos pelo escuro azul do céu, fisga a faísca do que lhe cutuca. Simplesmente havia esquecido os instantes de duas tormentas. Duas dores de amor. Isso mesmo. Os dias seguiram incólumes até o fatídico momento da pergunta. Quase incólumes, melhor dizendo. Há vestígios. Soterrados ou não.

É isso?

Nunca mais, nunca mais quero sentir isso novamente. Recorda-se claramente de ter dito. Imagens retornando com voracidade. Vontade escumunal de descer as escadas a passos largos, alcançando-o antes que a amplitude do ambiente, cada vez menor, destroçasse o peito. Por favor, me desculpe, fui um idiota, sou um covarde. Mas não foi bem assim. Ele não desceu as escadas. Deveria ter contornado a situação com menos moderação? Menos decência. Olhando pela janela não percebe quando seu ponto de ônibus fica para trás. Continua hipnotizado pelas lembranças até estacionar no terminal. Ao encontrar o caminho de volta o ônibus havia acabado de partir. Tem que esperar.

Quando a outra dor veio, contornou o esmagamento escrevendo cartas ao amado. Todas elas entregues. Ainda possui cópias (disquetes imprestáveis?). Só para não esquecer.

Mas esqueceu. Pouco a pouco foi despistando as pistas e as testemunhas oculares do crime. Para não voltar. Então dali, desse lugar que não chegou a ir, encontrar modos e utensílios para (apreender a) continuar. De um modo tal que teria adquirido a naturalidade de viver com mais consistência. Com menos medo de arriscar – o horror no olhar do outro.

A pergunta provocou uma fenda que o rachou inteiro. Caiu o pano. O homem se sente estranhamente aliviado. Ainda assim perturbação surge ao longe, contaminando-o com paciência e persistência. É verdade; pensa. Apesar de ter lembrado a existência da dor de amor, perdeu seu hálito. Não mais guarda o afunilamento do sangue pela carne enquanto calor propaga-se em todas as direções – prováveis!? O som do trinco da porta se fechando está tão bem arquivado que não é possível desativá-lo. Assim foi escapulindo dos rituais de passagem inevitavelmente imprescindíveis. Ancorado em ruínas – constantemente reviradas. Nem bem a porta do coletivo entreabre e o amontoado de gente já se enfia para dentro. A artimanha mais ferrenha dessa fuga tem sido o sexo breve. Intimidade contendo superficialidade necessária à energia suficientemente capaz de se esgotar quando requerida. O homem esboça um sorriso irônico ou é um solavanco?

Sim, eu já amei. O turbilhão dentro do ônibus é tamanho que sua voz se perde junto com a afirmação. Sequer percebe tê-lo dito. De tal modo compenetrado que nem sente quando uma mão enfia-se dentro do bolso da calça e pega seu celular. Movimentação toda que no entanto o alerta a descer na próxima parada. Algazarra dos pássaros nas árvores causa perturbação no homem. Balburdia atraindo outra pergunta. Eu já fui amado? E sem mais delongas, sem sequer tempo de cura, devasta-lhe outra. Há indícios comprovando esse amor? Respiração picotada.

Sim. Sim, há. Há? Quase engasgado. Já recebeu uma carta de amor. É claro, meu Deus, a carta. Também havia se esquecido dela. A carta de amor. Extraviada. Cultivando-se em algum faz de conta. Acelera os passos com a avidez do faminto que vislumbra a real possibilidade do alimento. Enquanto isto nuvens acinzentadas se tornam cúmplices. Entra em casa todo esbaforido, sem tirar a camisa colada de suor, abrindo e fechando portas, malas, caixas. Duas páginas de palavras de amor conservadas dentro do livro ‘Antes do túnel’.

Páginas alagadas. Palavras borradas do irreconhecível quando o homem as guardou no bolso da calça. Ficar em casa sangra um perseverante rebuliço por dentro. Seus passos são incoerências cardíacas. A chuva que cai nessa noite carrega a ferocidade dos deuses. É como se desejassem desafiar a permanência humana. Já protegido pela cobertura da parada de ônibus surge uma vontade quase incontrolável de rir. Com muito cuidado retorna ao bolso da calça as duas páginas encharcadas e vazias. Vento vigoroso deslocando nuvens escuras para longe. Agita a mão como de costume. Não querendo perder o semáforo verde, o motorista segue enfrente. Nas árvores os pássaros saracoteiam sons desenfreados. No caminho de volta, embora impregnado de frio molhado, sente-se vivo. Absurdamente vivo.














Por detrás das nuvens


I


Ela penetra a praça como de costume. Tonta. Com a cabeça baixa de tão atenta segue pelo caminho que circunda o jardim e desemboca em si mesma. Acompanha seus próprios passos em um devaneio circular e esclerosado. Sombra rastreando-lhe o rumo. Vento percorre as dobras de seu corpo confundindo-lhe a memória. Seus cabelos brancos se agitam em um balé desnorteado. O frio não é intenso, mas ela enterra as mãos nos bolsos inclinando-se com súplica. Estremeço.

Ela se senta ao meu lado. Abaixo a cabeça com receio que se vire em minha direção. Tenho a nítida impressão que minha presença a incomoda. Com a ponta de meu dedo divago um círculo na palma da mão, uma contínua espiral arrastando-me inteira. Sol alinhando-se de viés. Quase inoportuno. Afloramos à beira da inocência de tão estáticas. Percebo o esmalte descascado. Meu olhar se fixa na sombra de uma árvore. Diante de nós um mundo de vermes fitando-nos com desfigurada repulsa. Silêncio à espreita.

Ela nunca havia tido a oportunidade de ostentar seu cheiro. Fragrância amarga, descompromissada. Suas vestes cheiram a naftalina. Vem-me a imagem de um guarda-roupa de madeira com curvas antiquadas, insinuantes. Uma porta sem fechadura que deve passar a maior parte de seus dias entreaberta. Quarto manchado pelo mofo, assoalho de madeira velha, partida e que range. Baratas! Grupos delas reunindo-se pelos cantos do quarto para discutirem uma forma de expulsá-la. Baratas rajadas de asco pelo corpo que não tem a decência de contradizê-las.

Seu perfil demarca imponência aflita. Busco adivinhar seu nome, curiosamente não me vem nada plausível. Nada que me remeta à vida terrestre. Ela alonga os músculos contraídos da face em uma tentativa de sorrir. De súbito olhando-me de frente. Seus olhos claros me lembram os olhos esbugalhados dos peixes vendidos nas feiras. Sorriso desfocado. Boca entreaberta e calada. Esforça-se para dar ritmo tranqüilo à respiração, querendo provar que ainda há resquícios de umidade em seu ventre árido. Inimigo extirpado. Comprime as mãos contra o rosto esfregando olhos enevoados. Levanta-se de imediato. Ossos movediços murmurando um apelo oco.

Avança por entre as pessoas que seguem em direções diversas. Pára repentina. Enfia a mão no bolso do casaco retirando um bloco de anotações e uma caneta. Escreve. Destaca a folha e estende a mensagem às pessoas que investem em sua direção, de modo que possam ler. A maioria delas não percebe a situação, algumas fitam-na com curiosidade, outras aceleram os passos. Livra-se da página e rabisca outra. Repetindo os mesmos gestos. Observam-na de soslaio. Seu rosto se parte gradativamente em uma estridente e desembaraçada gargalhada. Algumas pessoas riem contagiadas, ou constrangidas. Inclusive eu. Há algo de sinistro no coro que se instaura, frenético e repentino. O Sol refugia-se por detrás das nuvens, demarcando uma penumbra certeira. Uma criança brota do meio das pessoas e com delicadeza retira-lhe o papel da mão. Recuo o olhar para as minhas mãos, as dela oscilam. Sorvo-me em calafrios. Um inseto esquadrinha minha saia de linho branco com petulância. Esmago-o em fúria. Nódoa resignada, irregular. Engasgo com minha própria saliva.

As pessoas se dispersam meio afoitas. Observá-la a distância é menos arriscado. A mulher empertiga-se, apóia com firmeza em si mesma e escreve. Breve, visceral. Olhos grandes e incisivos. Ergue o braço com nobreza pálida, ofertando a hóstia a todos os presentes. Aguarda. Instinto flamejante. Levanto-me à beira do estilhaço. Pessoas contornando-a. Amparo na bengala com todo meu peso. Falta-me ar. A folha de papel cai suave, acomodando-se lentamente no chão. Vento sepulcral. A mulher de cabelos esvoaçados esquiva-se por entre as pessoas. Misturando-se à multidão. Não mais a reconheço. Continuo sem poder me mexer. Sangue embotado. Gotas frias de suor dispersando-se pelas dobras de meus dedos. Encontro impulso redondilhado numa prece. Avanço a passos largos. Nó na garganta, boca salivando. Curvo-me com precisão e agarro a folha de papel.




II


Não há Lua. Noite fria e escura. No dia seguinte, na televisão, será dito que desde a década de setenta não faz tanto frio. Apalpo-me por debaixo da coberta refugiando-me pelas dobras quentes de meu corpo. Ando sonhando com ela. Sempre acordo em agonia, transpirando um suor pegajoso. O quarto se mantém impregnado de sua presença, e hoje mais do que nas noites anteriores. Acomodo-me no travesseiro ajeitando a espinha que lateja dor. A enorme cama de casal parece querer me expulsar para as curvas onde a empregada semanal não alcança. Ajeito a coberta com a máxima atenção, só a cabeça fica desprotegida. Tenho essa mania desde criança, sempre tive receio de me cobrir por completo. Fico horrorizada só de imaginar que um dia vão me lacrar em uma caixa e jogar terra por cima. Logo eu que nunca fui desleixada e suja – desde criança. O ar que entra pela janela traz um frescor de outros mundos. Fecho os olhos e me viro na cama.

Aquele fim de tarde persiste em retornar. Mão ensopada de suor apertando a bengala, braço em riste, folha de papel vacilando, pés intranqüilos. Ergo as pálpebras e vejo seu vulto combinado à penumbra do quarto, ao lado da cama, observando-me. Serena? Sorrio deslumbrada, tal como quando dei a luz aos meus filhos. Há muito não me sinto tão aliviada de algo que me costura por dentro e que não compreendo. Assusto com minha voz impecavelmente impostada; não, por favor, não se aflija. Eu também te amo.















Durante a madrugada


Os rasgos de dor não incomodam muito por que a esta hora da noite o frio é realmente cortante. Mas não é apenas isso, e nem poderia. Não com uma baderna desse calibre. A convicção de não morrer deste modo escancaradamente imundo, apesar das promessas de honrarias, instiga-lhe abrir uma vez mais a carta de amor. Cuspida milagrosamente intacta depois que uma ou duas granadas foram jogadas na barraca vizinha, colada na sua. Matando todos em que ambas dormiam. Com exceção dele próprio, já que sua bexiga sempre exigiu que se levante pelo menos três ou quatro vezes durante a madrugada.

Por meses a fio procurou dar um rosto ao destinatário. Carta esta que é exatamente a que jamais recebera daquela que ele insiste em querer relembrar como seu grande amor. Olhos nos olhos atando-os como se jamais pudessem ser interrompidos – a não ser pela parede que espontaneamente obstrui caminhos distintos. É inconcebível que desde a ruptura já tenha se passado quase seis anos. Antes que a realidade esfregue na sua cara a própria covardia, tornou-se palpável inclusive um longo e ardoroso beijo que jamais existiu. Convencido de que sua vida não pode seguir sendo algo absolutamente solto assim, tão em vão, tão cheia de lama e insignificância. Nem sequer constituiu família. Imagina como teria sido exuberante um filho seu com a idade de cinqüenta anos visitando o túmulo do pai. Do pai morto aos vinte e um.

Apesar dos estrondos com riscos de luz, de alguns companheiros dançando de braços abertos antes de caírem, degusta com euforia o desdobrar da carta de amor. Seu perfume realmente ainda está ali ou é mais uma entre as estratégias do que é vivo? Assopra a poeira. A cada leitura uma nova digital. Faz questão de lê-la em voz alta. Nada em torno possui força suficiente para obstruir a vibração aquecendo-lhe por completo. “Há tempos queria escrever uma carta de amor, mas as cartas de amor sempre me pareceram sem sentido e sempre quando as lia pela segunda ou terceira vez me pareciam estúpidas. Mas agora há a necessidade de escrever meu amor. Meu amor. Meu amor por alguém, meu amor que é terno e belo e talvez uma das poucas belezas neste mundo – que agora tem uma beleza diferente para mim. Me perco, com ele me perco, me acho. E dele veio um chorar mais belo e profundo, meu coração se acalma, minha mente borbulha. Não consigo dormir em outro lugar senão ao seu lado, todas as noites. É o amor. O amo como amo meu choro. E meu riso. Amor pela saudade e pelo calor. O amo e me alimento como que com Clarice e Nelson e Dante e Camus e Miguel e quem mais vier por nós. O amo tanto que me entristeço porque está longe, mas quando está perto... O amo. Nunca é tarde. O amo, nunca é longe. O amo pq é presente. O amo pq não acaba, como esta carta de amor. Te amo.” O único aborrecimento é o fato de não haver nome nem sobrenome, tanto no início como no fim da carta. Por outro lado esta insensatez alimenta seu prazer de relê-la com cobiçada avidez. A cada leitura fica mais convencido do que nunca de que a carta fora escrita para ele.

Já que não acaba. Já que nunca é longe. Já que nunca é tarde. Que este amor lhe dê a certeza de que apesar de ter se comportado como lixo, não irá para o lixo. Por debaixo das unhas ainda se vê farpas de imundice coagulada. Ontem mesmo matou alguns homens e depois segurou os braços de uma mulher que outro soldado penetrou com seu membro duro e grosso. Com uma brutalidade que só não incomoda muito por que o rosto da mulher fora tapado com pedaços de coisas e cotovelos. Esfrega a carta em seu próprio rosto farejando resquícios de calor redentor. Alcançando uma vivacidade deslocada do ambiente. Soldado de arma em punho olha-o com desconforto. Sai em retirada atirando para os lados. Naco inútil? Admiti-lo que sim diminui consideravelmente a força brotando das palavras, das dobras do papel. Do segredo entre amantes fervorosos. Enigma que só encontra nome em seus braços – nos braços de ambos. Ardor capaz de despistar a agonia que tem tomado a forma de todo seu corpo.

Com delicadeza pousa a carta entre sua orelha e o chão de terra. Os estrondos parecem dar uma trégua. Ou está morto? Pára de respirar por um momento, só para ter certeza que é possível ouvir as palavras. A terra então treme com eficácia súbita. Um soldado é jogado para dentro da trincheira, caindo com sua cabeça bem encima da carta de amor. Olham-se. Calor varrendo o incompreensível. Lábios colados. Salivas combinadas escorrem riscos nas duas páginas. Pequenas manchas criando manchas maiores. Esforçam-se para ficarem ainda mais juntos. Línguas se tocam. Apesar do outro soldado ter perdido o braço e parte do coro cabeludo, ele é quem morre primeiro. Olhos abertos. Só um deles continua tremendo. Não por muito tempo. Os estrondos estão cada vez mais próximos. Tão perto que já não é mais possível escutar. Quanto mais busca ar, punhado de terra é sugado garganta adentro. Terra arranhando globo ocular, enfiando-se pelas narinas. Soterrando palavras, osso exposto, mãos dadas, veias.














Magnólia


Rosto coberto por grossa camada de sardas, ríspidos cabelos negros, envergadura robusta nas costas. Dificilmente se manifesta em público, no ponto de ônibus, enquanto acompanha a patroa no shopping, até mesmo na igreja. Observa as pessoas com veneração, jamais sem deixar à mostra largas gengivas de lábios sorridentes. Não retruca quando seu homem bate em seu rosto com seu próprio joelho, forçando-lhe despregar as nádegas de boca fechada. Ainda assim é possível constatar contentamento. Guarda em segredo a pétala seca do buquê de flores que a vizinha recebeu no dia dos namorados.

Ela não tem filhos, nunca fizera exame médico ou sentira dor de cabeça ou tomara anticoncepcional. Está convencida de que é milagre. Abaixa a cabeça ao discorrer sobre uma época de menina em que enfiou os dedos na vagina, esfregando-a como se aperta massa de pão-de-queijo. Foi um susto, sua mãe sacudiu-a até perder o fôlego. Bateu na sua cara, nos dedos e mais na cara antes mesmo que pudesse sentir o fim do fogo cavernoso. Foi salva do chamado quente das trevas. Sorri com queixo firme ao dizer que jamais trai a mão que lhe mostra o caminho.

Seu homem acabara de lhe dar um safanão dizendo para se afastar; êta fedô do cão. Acordou com os lábios trêmulos. Sem entender por que passou a maior parte da noite sonhando consigo mesma ardendo em chamas. O sinistro é que não se queimava apesar do fogo continuar se espalhando. E ela pulando feito doida. Seu homem ri tanto que em agradecimento enraba seu traseiro avantajado. Ah, ela não sabe gemer, fica contando de um a sete e recomeça quantas vezes for necessário. Há ocasiões em que pára no número dois, outras vezes no cinco e acha estranho nunca terminar no número seis. Seria algum sinal? Arrepia vez ou outra quando ele a chama de vagabunda, antes de lhe dar socos nas costas e grunhir feito animal. Como é que ele pode saber que era exatamente assim que seu pai dizia ao entrar em seu quarto? Há certos indícios confirmando-o definitivamente como o homem de sua vida.

Ela tem paixão por plantas. Permanece por horas a fio sentada na frente do prédio da patroa, estupefata com as alturas das árvores e com a diversidade de verdes e mais cores. Dependendo da posição do sol a paisagem torna-se por vezes radiante e em outras, quando as sombras se dramatizam na grama, sente um frisson instigando-lhe a levantar os pés do chão. É num desses rituais de contemplação que sua patroa perde a paciência. Contata a Administração de Controle Social relatando suas atitudes e os motivos pelos quais ela deve ser levada a interrogatório. É terça-feira e há muita roupa para passar e lavar. Homens engravatados e usando luvas permanecem de longe, observando-a atenciosamente, fotografando e fazendo anotações. Discutem o assunto entre si e só então chegam perto. Não há resistência quando o homem de cabelos encaracolados pede que o acompanhe. Acena para a patroa e para os vizinhos empoleirados nas janelas. Ele é de uma gentileza espantosa, possui olhos negros e grandes mãos que se fecham nas dela durante todo o percurso da viagem.

Ela é levada para um cômodo sem janela e sem móveis.

Perguntam seu nome de batismo. Batista é meu marido, eu sou Magnólia. Eles transmitem incrível vigor na entonação de suas vozes e no balé de seus movimentos. Ela decide ficar calada, ouvindo-os com deslumbramento. Então?; pergunta espalmando as mãos na parede, com o rosto bem próximo do seu. Ruboriza-se. Abaixa a cabeça e pede desculpas. Será que a patroa descobriu que um de seus filhos gosta de socar a carne dura do meio de suas pernas em sua garganta? Mas como pode ser? Afinal o garoto sempre lhe pede que não conte pra ninguém. Além do mais ele fica tão feliz que a patroa não iria se importar. Ou será que tem algo haver com aquele pedaço de rocambole que ela devorou de uma só vez. Não havia ninguém no apartamento, todos já haviam degustado um café da manhã que brilhava tantas cores diferentes. Bebeu de olhos bem abertos a última metade de um copo com suco da própria laranja umedecendo os pedaços de rocambole grudados na goela. Sentada à mesa imitava a patroa repetindo a palavra rocambole em meio a gargalhadas retorcidas. Magnólia tapa o rosto com as duas mãos, deixando em evidência inflamações que por anos seguidos carcome-lhe os dedos ao redor das unhas. Pede mais desculpas quando as farpas brotando das palmas das mãos cutucam-lhe o rosto.

O anjo puxa seus cabelos envergando-lhe o corpo. Acerta-lhe o rosto bem encima do nariz. Ela cai de joelhos engolindo golfadas de sangue. Os outros a enchem de pontapés. Sapatos de bico quadrado atingindo seios, barriga, costelas, coxas, testa, dentes, orelhas, nádegas. Com o calcanhar pisam pés, mãos, joelhos, ombros, crânio. Içada pelo pescoço mordem nuca, queixo, lábios, axilas. Suas vestes são arrancadas com a mesma rapidez que lhe forçam a rachadura entre as pernas, um após o outro. Todos com camisinha e a inegável expressão facial de funcionários que são obrigados a fazer o serviço pelo qual são devidamente remunerados. Cospem em seu umbigo e saem para se lavar. Magnólia não ouve a porta se fechando. Balbucia números dentro da cabeça. Mesmo depois de horas estirada no chão movediço ainda não sabe quando parar. Uma coisa ela aprendeu, aprendeu a gemer. Ao decidirem desgrudá-la do rubro mar coagulado surge um grito vindo de dentro que vai além de sua própria percepção. Espicha-se mole, emitindo um som que não estanca, afiando-se insistentemente em uma eloqüente falta de cumplicidade entre ela e ela mesma. Na verdade, pensa enquanto a carregam, nunca foi capaz de ondular-se insinuante. Deve ser por isso que se enfiaram assim; afundando-me para dentro. Sempre foi um bicho esquisito, sem o poder de despistar sobressaltos nas pessoas.

Magnólia é despejada sobre a vegetação de uma praça. Noite cai devagar. Dispersa sobre a grama verde ela sorri quando folhas escorregam em seu rosto. Vento sacode galhos tremulando sombras por debaixo da imensa brancura da lua. Intenso facho de luz pousa sobre o corpo de Magnólia. Raízes rompem o limite terreno, rastejantes em busca da mulher apodrecida e viva. Salve, salve! Sob ela o solo arreganha-se eufórico. Mas antes. Duma fenda da noite mina um homem cambaleando. Sem notar que a maior parte de Magnólia continua pelo lado de fora, retira o pinto e urina. Líquido espumando afoga globo ocular. Gotas respingam pelos seios e entornam do umbigo. Arrota e vomita em seu rosto. Pisa em seus dedos e some. Com aleluia Magnólia se combina com a terra úmida.















Calor debaixo da coberta numa manhã fria


A cidade não está acostumada a tamanho negrume gélido. Certamente não há outro motivo para este silêncio. Este - é que quase sempre jamais é assim. Dá até calafrio; pensa enquanto esfrega uma mão na outra. De súbito do escuro espesso mina um corpo curvo pendendo para frente. Desponta-se devagar e torto, brotando com dificuldade. Ainda uma silhueta quase confundida pela noite. Quase desfeita de corpo. Distância sendo engolida pelos passos de ambos desata uma experiência interior à beira. Prestes. Mãos enfiadas nos bolsos. De uma pressa tão estranhamente idênticas. Tão absurdamente semelhantes, eles, que o desconforto aparentemente súbito proporciona alívio. Sangue alerta. Querendo algo além da vontade de despistarem o frio escuro nessa noite. Não ignora-se aconchego. Como se o afeto minado quando um diante do outro seja uma conseqüência tão inevitável como o é a Lua, hoje não vista, sendo arrastada pelo efeito provocado com o giro que a Terra pesa.

Visivelmente assustados, rijos como se a qualquer instante pudessem pular um no outro. Punhos cerrados. Possuem o mesmo rosto, mesma marca ziguezagueando pelo o início da sobrancelha direita, cabelo em desalinho, dedo indicador pendendo de modo bem específico. Mesmas vestes. Olham-se longamente, arriscando. Encaram-se mais tranqüilos antes de um abraço. Apertado. De uma distância que não parece física. O ambiente dobra-se sobre eles, habitando-lhes de estranheza familiar.

Receia perguntar-lhe o nome, apesar da imensa curiosidade. Há certo nada, uma espécie de vazio. Batidas cardíacas acompanham-se. Uníssonos. Só não absolutamente iguais porque uma fenda rompe o círculo. Círculo que só não é perfeito como círculo porque visto de outro ângulo é espiral revirando-se em mancha. Ainda que à imagem e semelhança um do outro, ali, algo os desloca. Despregam-se ainda que ainda tão penetrantes no abraço. Algo os incita desprenderem-se. Só para que então permaneçam, ao se olharem, identificando-se. Curiosos.

Escapam-se um do outro sem que o instante perca-lhes do calor que os aquece na perspectiva inegavelmente palpável da pele do braço. Cabeças afastadas dando espaço para que a noite enfie-se entre seus corpos juntos. Escuro entre eles incha. Enquanto cada um habita cada início de extremo desse escuro, imagens inusitadas confundem-se ali. Não quer exigir demais. Não quer exigir que sua mãe, aquela de cabelo vermelho que olha pela janela enquanto tochas aproximam-se esparramando enxofre, ou não sabe exigir aquilo que sua mãe nem sabe reconhecer. É que quando ela percebeu que sua barriga estufava sinais de vida, ela então desejou além, enfim ser mais do que poderia ser. Ela acreditou que por poder criar uma coisa viva dentro ela, poderia sim pouco a pouco ser mais do que ela própria era. À espera que o outro contribua para seu cultivo. É como se o outro, olhando-o pelo canto dos olhos, como ele próprio, tivesse por esse momento pensado o mesmo que acabara de lembrar.

É quando, no mais quente do abraço, tão junto que é como se não houvesse linha divisória, acreditam-se diferentes. Apesar de. Desalinho nos cabelos segue o rumo dos ventos. Beijam-se. No abraço os rostos foram se apertando, sentindo vontade de continuar escorregando até que os lábios se tocaram. Calor, saliva, língua. Ainda com todo o quente molhado, bocas não se encostam. São como que um dos dois enfrente ao espelho? Ainda que se toque a imagem, ali, há a linha do espelho. Apenas um? Mas há. Há? Germe serpenteando por dentro. O vento torna-os quase visivelmente ariscos. Esforçam-se serenos. Afastam-se sem tirar os olhos do cabelo um do outro. De mãos dadas. A dança que o cabelo faz é igualmente a mesma em ambos? Olham-se como que de frente para o espelho ou olhando algum alguém? Outro? Cabelos tomam rumos que ventos tocam. Cada qual ocupando sua específica posição. Ali, no frio, eles não se esclarecem. Ou não querem esclarecer o que já evidencia um rompimento resfriando o inesperado, uma espécie de enigma que de súbito revela-se mera linguagem, conexão de elos. E o arrepio? Tensão escoa-se por entre eles. Algo que os quer juntos apesar da espécie de reta pela qual seguiam-se - Chamando. Empenando-se. Olham-se bem numa espécie de meio fugidio dos olhos. Algo cutuca umidade. Que pode ser interrompida se desviarem o olhar. Mas não. Insistem. Hesitam-se, ainda que de mãos dadas. Torna-se forte de súbito a vontade de ar e luz. Desatam-se quase sacudidos. Intersecção os atrita calor. Continuam-se pelo caminho sem olhar para trás. Tensão permanece.

Fiapo de luz destrava. Atravessa vão entre edifícios e cai neles. Ambos de costas um para o outro. Estacam-se sem os passos de agora, bem agora mesmo antes do facho de luz. Retornam-se num giro sereno, com a extravagante sensação supostamente ofegante de verem-se assim que se olharem. Aproximam-se com ouvidos atentos. Vamos ensaiar-nos. Respiram fundo. Aquecendo hálitos. Noite ressoa pelas curvas. Pelo silêncio que olhos tocam. Ensaiando-se - juntos. Fecham os olhos, degustando a delícia de ao abri-los verem-se muito além do delírio com cheiro e suor. Na medida em que se aproximam luz diminui. Deve ser alta hora da madrugada, pois o frio intensifica-se. Bocas não se encostam. Até quando há como negar? Afinal, cabelos tomam rumos que ventos tocam. Ele fica frágil. Quanto mais torna-se difícil respirar, mais e mais o corpo se esfacela num lento desaparecimento. Arrastando consigo a umidade que agora ele confunde com sua própria. Rastro do estranho é rasgo no escuro. Confuso. Difícil conseguir distinguir essa fresta. As luzes da rua e das casas também não funcionam. Abaixa os olhos enquanto seu corpo anuncia um tremor que depois de começar parece não ter como desatar - ao menos não com o tempo necessário à tua carne.

É agora?; indaga surpreso e ansioso. Prende a respiração, à espera. Olhos não piscam. Salta menos de um passo para dentro da fundura rasgada, querendo alcançá-lo antes que essa sua fuga comece a apagar-lhe o calor daquele instante. Sente que há o instante exato de mergulhar ali. Quase engasga. Antes de pousar o pé, flutuando pelo escuro, pode-se enfim ver um pingo de lapso de luz moldado no corpo que bem agora a pouco estava aqui. Então, antes de pisar no chão, Aeglos já sabe em que direção ir. Grita e o corpo parece não ouvir. Chama-o causando sons. Idiota. Nem mesmo o nome; insiste numa voz arranhada, quase irada. Depois que o dia nascer, nos meios de comunicação, além da neve, falar-se-ão também de um vírus que tem deixado as autoridades de prontidão. A cidade manterá o silêncio que surgiu com a noite, mesmo depois desse Sol forte. E a sensação daquele homem permanecerá cutucando-lhe pelos dias.

Se fosse antes, antes de morrer, ele jamais lembraria. Não com essa vivacidade, de uma tal expressividade que a sensação de que tudo ocorreu realmente permanece como um cheiro. Sabor de comida aos domingos; acrescenta olhando o teto. Nu. Estica as pernas bocejando. Derruba o último pedaço de coberta no chão. Antes ele ressuscitava toda manhã. "Não se chora em seu próprio funeral", lembra de repente sem saber de onde já ouvira isso. Agora coisas minam do escuro. Pisa no chão. Fica um tempo assim, olhando a luz que vem de fora. Caminha até a janela e finalmente vê o brilho que antes não estava ali. Antes. Cabelos tomam rumos que ventos tocam. Alguns detalhes no rosto daquele outro começam a fugir. Ainda que demasiado idênticos, ainda que de uma similaridade incontestável, vai como que preferindo, sem poder de escolha, confundir os detalhes que além de torná-lo mais próximo, cultiva-lhe a satisfação de um abraço, do calor debaixo da coberta numa manhã fria. Um diante do outro querendo saber qual deles permanece. Um deles sabe que quando o outro deixa um recado, uma mensagem no celular e ele não responde, é porque lá no fundo, lá no fundo tem mesmo é receio da rejeição que na intimidade virá. É uma agonia. É uma luta. Virá esse hábito de perder o corpo depois que o ganha? Mas. É como se fosse um imã sugando. É que parar de respirar é difícil. Vento forte joga seu cabelo para trás e para a esquerda. Aquece-se com movimentos frenéticos dos braços, tentando espantar o frio que a janela aberta flagra. No caminho para a cama sorri lembrando a manhã. Uma força vence dentro dele, à espreita. Deita buscando o jeito mais quente debaixo da coberta.

















Evangelho segundo o quarto andar


Teto branco. Não há dúvida quanto a isso. Mas o tempo que ele permanece a observá-lo é tamanho que inúmeras vezes se sente equivocado. A luz que entra pela janela incide nas dobras do teto com as paredes trazendo nuanças de cinza e branco gelo. Há momentos em que o próprio branco parece embaralhar-se em diversas camadas de branco. Aperta os olhos para não se confundir e manter a sanidade quanto à noção das cores. O quarto não é pequeno, mas já se passaram quase três semanas que o confinaram àquela cama. Amplitude inicial do espaço transformara-se em sufocante impotência.

Observa a refeição que lhe trouxeram. Tenso. Sua língua move aturdida na boca seca. Rachaduras pálidas nos lábios destacam com perfeição trágica a expressão de receio. Perde-se entre a vontade do alimento e o pavor da dor. Coloca a mão sobre a barriga inchada tentando imaginar que conspiração diabólica é essa que seus órgãos estão a maquinar.

Olha o teto com aguda falta de humor. Permanece assim por tanto tempo que quando acorda já é alta noite. Peito encharcado de suor. Ventilador grudado na parede gira quase parando. Luz fraca acima da cabeça o faz bocejar. Pontas dos pés alcançam o fim da cama. Curva o corpo tentando espantar a dor cortando-lhe a parte superior da barriga. De um lado a outro. Há dias em que prefere fingir alimentar-se. Seu estômago não interpreta suas peculiaridades mais básicas. Maldito covarde! Seja como for, soro invadindo as veias pode não ser suficiente. Uma bandeja com nova refeição fora estrategicamente disposta na mesa ao lado. Fita o teto com pressa. Teria ele percebido aquela minúscula gota de suor depositada acima do lábio superior?

Move uma perna para fora da cama. Teto distante. Cor escuro cinza predomina. Arrasta outra perna. Finca cotovelos no colchão erguendo o tronco, seu corpo desliza cuidadosamente em direção ao piso frio. Apoiado na cama alcança a mesa puxando-a em sua direção. Nódoa úmida e disforme encova o lençol claro. Apóia-se na cama fitando a sopa cor mostarda. Legumes devidamente triturados. Degusta-a pausadamente com minuciosa desconfiança. Vento morno e lento domina palmo a palmo do quarto. Pés gélidos. Mastiga mecanicamente o último resquício de comida grudada na língua e no céu da boca. Ouve vozes. Vêm do corredor, de outros quartos, de outros tetos, de outras camas. Outro corpo. Haveria algum inseto lançando minúsculos olhares, ruídos quebradiços? Angustia-se. Não está convicto de que uma companhia pudesse salvá-lo do cansaço. Haveria alguma palavra ou algum toque capaz de contaminar-lhe coerência?

Coração veloz. Deseja testemunhar no espelho o debater-se na direção contrária. Morte anunciada por exames, agrupamento de letras computadorizadas, assinaturas de médicos. O ideal é não desistir, nunca se sabe o momento em que o tratamento impedirá a evolução da doença; dizem e continuam a dizer. Não reclama daquilo que não se estanca. Viver não chegou ao meio; surpreendeu-se certa vez enquanto a enfermeira, de costas, preparava os comprimidos.

Ergue o suporte de metal sustentando a solução de glicose e caminha até o banheiro. Apóia-se na pia se recuperando do pequeno esforço. Náusea aloja-se no estômago com ardor. Olha-se agonizante. Contrações escalam a garganta em impulso devastador. Líquido vistoso atravessa a boca com impacto. Mãos ancoradas na pia. Os ruídos que se seguem aos vômitos não resgatam seu lado humano. Dialeto impossível de decodificar! Seria possível racionalizar uma linguagem onde o corpo tenta expelir a si próprio?

Encara atônito seu próprio olho - um após o outro. Diante de si presencia um borrão de ossos, músculo e pele. Essa débil essência refletida não é compatível com a mais simples das memórias, sejam elas de sua família, de amigos, do arroz branco, da cerveja no bar, do filme na sala de cinema quase vazia, do leite com café, da piada. Do beijo. Nada! Nenhum instante lembrado concilia-o com o que agora contempla e sente. Por um breve momento está distante do planeta Terra. Com exceção de si próprio todo o banheiro parece irreal. Ou seria o contrário? A brancura dos azulejos e do teto lhe fere os olhos. Quase cai. Respira fundo por vários minutos afrontando tremores. Aos poucos se firma mais consistente. Lava as mãos e molha o rosto com abundância. Deixa a água ramificar pelo pescoço.

Incomoda-se com a certeza de que há algum inseto observando-o de alguma dobra, à espera que durma só para subir em sua cama e lamber-lhe inteiro. Vasculhando-o até encontrar esquecidos reservatórios de alimento quente. Água. Com cuidado tira a roupa. Esfrega-se embaixo do chuveiro atento à agulha enfiada na veia. Sai com receio de escorregar. Na última queda enfiou o cotovelo no ralo com tanta força que até hoje é difícil esticar o braço. Escova os dentes. No espelho destampa-se inteiro. Sua nudez é um livro à parte. Todos os pelos disseminados a Deus dará causam-lhe aflição.

Dá as costas a si e sai do banheiro. Esgotado.

No guarda-roupa encontra roupa limpa. Caminha até a janela. Dá volta ao mundo várias vezes. Brisa morna. Observa o negrume da noite com interesse. Acompanha as faíscas dos carros em movimento até o instante em que não é mais possível imaginá-los. Tenta o mesmo com as estrelas estáticas. Aborrece rapidamente. Retorna ao leito ajeitando o lençol até onde o braço atinge. Deita com tamanha satisfação que sorri. Olha o teto. Continua branco.

















Raros olhos ofegantes


I

Ela surge de dentro da noite segurando um buquê de rosas vermelhas. Rosas desidratadas de cor opaca. Foi amor à primeira vista. Jamais desprezaria o dia em que as encontrou dispersas pela calçada. A princípio teve receio de se aproximar e tocá-las. Deu-se ao prazer de prolongar o cortejo por horas a fio. Quando finalmente as segurou com as próprias mãos, sentiu uma vibração percorrendo todo o corpo. Estufou o peito e carregou o buquê como a um recém-nascido.

Já é tarde da noite e o mais recomendável seria não dormir no lugar de sempre. Seu amigo estaria lá e poderia decidir ficar com ela. Com sua impressão das coisas ele seria capaz de jogá-las no lixo assim que as visse. Decididamente a noite está reservada a elas. Enquanto estiverem juntas não terá o menor receio de visualizar em bom tom o mais íntimo dos segredos.

Como quando pediu ao seu amigo que não apertasse seus seios inchados e doloridos. Ele disse que era melhor ela se calar e para que não se sentisse rejeitado consentiu que a penetrasse e que mordesse seus seios. Suas mãos tinham uma pele ríspida. Unhas em lascas. Ele dormiu logo em seguida, engasgando uma respiração abarrotada de pedregulhos. Foi quando teve a oportunidade de observá-lo com eloqüente nitidez; barriga flácida e volumosa com uma brancura encardida, braços e pernas finas. Cabelos incrivelmente negros e de impecável oleosidade. Pouco tempo antes fingiu não ver quando ele escondeu em seus pertences uma garrafa de bebida com fragrância amarga. Com cautela entornou grandes goles daquele líquido, louvando as luas por afastarem de suas partes íntimas convulsões desconcertantes. Dormiu sonhando com ratazanas gordas que devoravam umas às outras.

Ela jamais mentiria às rosas. Elas têm a magia de transformar o passado em presente. Cora ao confessar ter gostado de estar com ele. Seria este o sentimento que os seres inquietos buscam com tamanho afinco? Ela não responde. Mas; suspira. Basta o Sol ameaçar partir para outras paisagens que seu amigo a almeja com raros olhos ofegantes. A vontade com que ele fecha os braços em torno do seu corpo é de amolecer o cérebro. Engole a própria risada tapando a boca com força. Olha para os lados como se alguém a reprovasse. É quando vê que na verdade o silêncio da noite é para poder observá-las mais de perto. E com maravilha. Arriscam passos de dança. Música com caralhinhos voadores inflamando-as de gargalhadas até se cansarem. Adormecem na esquina em que pousa a primeira ranhura solar.



II

Ela surge de dentro do dia segurando o buquê de rosas desbotadas. Talos pelados. Seus passos descompassados abrem-lhe caminho. Detém-se em sobressalto ao ouvir um rumor prolongado. Corpos nervosos distanciam-se em alerta. Enrijece ao encarar seu rosto empapuçado refletido no pára-brisa de um caminhão que avança decidido. Por uma fração de segundos a imagem de sua mãe invade-lhe a memória, ecoando como um estrondo em seus tímpanos. Minha doce e bela princesa; som escorrendo pelos cantos da boca. Sua mão direita contrai, estalando os espinhos que penetram na carne inchada. Ergue o braço na direção de seu reflexo e brande as rosas.
















Quando a tarde cai


Com uma combinação de curiosidade e espanto a criança olha. Caretas aguçando o homem e a mulher de um jeito fera que ele não conhece. Tudo forçosamente rápido demais. O pé de ferro da cadeira afunda a cabeça da mulher. Ela despenca de olhos fechados. Acompanhando o peso. Cai em imagens de agonia marchetadas na carne fresca. Quadro-a-quadro das profundezas à superfície. Baque não encontra som.

Não sabe o que fazer. O homem é grande e tem cara esquisita. Empedrado olha-o de baixo. Agulha brinca de se esconder dentro de seu corpo. Grito lacrado cria espinhos afiados que vão se espichando, derramando-se por dentro em fios cada vez mais sorrateiros. O homem parado é uma mancha, depois sai pela porta da frente. A criança enfumaça-se a partir de dentro, comprimindo espaços internos que antes arejavam braços estirados maleáveis ao léu. Em um estalar de dedos água começa a se agrupar viscosa, ruim de beber. Desaconselhável estender-se por perto, sob o risco de cair enfermo.

Não compreende a expressão que seu rosto contraíra. Morde os dentes com muita força e promete nunca aprender um nada que seja com o homem. Muito menos com a mulher – desvenda bem depois. Assim que ele revela os olhos ela se enfurece com seu pavor de ser olhado. Enfia os dedos em sua goela enquanto ele tenta falar sobre aquilo que seu dedo aponta. Ainda há tempo; arqueia-se irada. Entre a solidão desesperada e a morte quando a tarde cai. Há tempo para acertar a vida. Há tempo; balbucia com olhos aflitos. Não quero nenhuma testemunha ocular indesejada nos lambendo. Mumificando-nos de um futuro sem possibilidades de comunhão. E quer saber? Tudo o que você viu na verdade não aconteceu. Menino com olhos cada vez mais estarrecidos. Que o (seu) livre arbítrio, a promessa de meu útero e a gravidade terrestre lave-me de blasfêmias. Redimindo-me ao sono dos justos. Dito isto, aproxima-se com pujança materna e arranca o prego fincado em seu peito. Senta-o em seu colo enfiando quantas colheradas forem necessárias, até aprender a comer quiabo; é para o seu bem, em tempos assim não se pode recusar comida.

Esquece a queda.

Segue olhando de viés, narcotizado em movimentos curtos e parando abrupto, pressentindo que alguém possa surpreendê-lo pelas costas. Inclusive pelo furo no peito. Com ou sem seu próprio consentimento. Tão indecoroso, ele, como qualquer outro que abre a boca enquanto instalam aparelhos corretivos na arcada dentária sendo corroída por maxilar enrijecendo. Alarme embola duro até os pés e depois sobe mole. Miopia engrossando as lentes. Dedos dos pés encrespados. Ombros fisgados para cima por ganchos.

Em seu devido tempo, reverso apossa-se dele. Eis que luz do Sol estende-se em sua mão. Sente giro terrestre devastando as encostas de seu corpo. Navega com asas estonteantes de impulso. Luz tem peso?; pergunta com alegria incomum. Olhos quase alucinados. Com as próprias mãos escava a luz. Ali encontra seres bem pequenos. Minúsculos de um modo que o fogo no peito é todo o corpo. Respiração pulsa robusta. Nunca mais pode deixar de ser inspirado pelo estranho familiar que seu arrepio chama – sob pena de revirar olhos cada vez mais adaptados ao negrume abandonado pelo vento.

Quando a queda vem à tona já é tarde. Ou melhor, é sempre o necessário começo. Com o toque da luz havia encontrado sinais indicando o percurso. Seu lar. Seiva magnética destravando lembretes incompreensíveis. Apesar de que só foi mesmo capaz de enfim dizer não ao sombrio após seduzir uma queda. Com todos os seus inescapáveis afundamentos. De deleite. De recusa.

Do rosto, que antes ressoava uma presença estrangeira e da qual não sabia memorizar, infla traços iluminados de potência. Baque encontra som. Tem a nítida e incontestável certeza de que alguém o observa de baixo, embora não haja ninguém ali. Fixa o horizonte com olhos penetrantes; como cultivar a permanência humana?
















Comportas se abrindo


A garçonete gorda retira com pouca desenvoltura os pratos dispersos sobre a mesa. Peitos tão enormes que se tem a impressão de que os botões estrangulados da blusa serão arremessados a qualquer instante aos confins da obscuridade. Seus óculos de grau com lentes grossas equilibram-se tortos pela ponta do nariz escorregadio. O rapaz que acabara de sentar a observa com atenção, como sempre o faz desde o dia em que passou a almoçar ali, o restaurante da esquina perto do seu trabalho. Ela jamais retribui os olhares. Ao se distanciar ele observa as espaçosas nádegas se movimentarem naturalmente redondas e ondulantes. Saia estendendo-se até os joelhos deixando à mostra uma pele alva. Fios azulados boiando no branco leitoso. Ele não compreende porque retorna todos os dias ao restaurante com uma excitação quase adolescente em querer revê-la. Ela possui uma falta de charme febril. Uma insegurança que o enfurece. Despertando o desejo de tê-la nos braços, despindo-a em rasante volúpia e amaciando repetidas vezes o interior de sua carne tenra. Imagina-a trazendo grandes quantidades de comida à boca, em qualquer lugar e a qualquer hora, não importando em se esquivar pelos cantos da cozinha do restaurante, de um corredor qualquer, pelas escadas ou pelos cômodos de sua casa.

Ele faz o pedido como de costume, pensando por alguns instantes antes de se decidir. Não que esteja indeciso, mas porque deseja observar de perto esses olhos parados. Teria ela consciência da sensação de estranhamento que provoca nas pessoas? Inclina a cabeça admitindo a distância mais aceitável. Seu cheiro é peculiar, não somente gordura e suor. Há algo mais. Não, não é bem isso, seria algo de menos, uma espécie de aroma ausente. Sua respiração atravessa as grandes narinas emitindo uma sucessão de sons quase primitivos. De súbito ela se agita grosseira, uma das mãos rodopiando pelo ar na tentativa de afastar um inseto que insiste em pousar ora em seu ombro ora em sua testa. Acalmando-se pouco depois. Sem se incomodar com o mosquito devidamente sossegado em uma das têmporas.

Ele completa o pedido. Ela segue por um longo corredor sem nada nas paredes até chegar na cozinha. Entregando-o ao cozinheiro. Aguarda apática. Vapores borbulhando das panelas, funcionários esquivos, azeite quente chamuscando alho em rodelas. Cuidadosamente estática observa o próprio reflexo na disforme bandeja de metal apoiada sobre o balcão. Rosto delgado. O mosquito decide desbravar a escuridão por debaixo da manga de sua blusa. Ajeita a alça do sutiã e o elástico embaixo dos seios. Entregam-lhe uma refeição quente, um prato com salada e um copo com suco. Certifica-se de que está tudo em ordem. Sai enfiando os pés nos sapatos.

Ele a aguarda ansioso. Ela esparrama atentamente a refeição enfrente ao freguês. Ele agradece. Ela balança a cabeça fechando os olhos.

O dia está relativamente calmo, sem a balbúrdia usual. Suspira aliviada. Sente-se embaraçada quando é obrigada a andar com rapidez, em especial quando o gerente berra cusparadas na sua cara. Com as mãos na cintura estuda com atenção as rosas expostas nas mesas vazias. Poderia se ocupar dispondo-as nos vasos esverdeados com um pouco mais de inspiração. A idéia havia sido dela. O proprietário aprovou. A partir daquele dia passou a comprar rosas quase todas as manhãs. Não se incomodando em sair mais cedo de casa para que tenha tempo de sobra para ornamentá-las nas mesas. Observa o arranjo atentamente. Dedos rechonchudos exigem de si redobrada atenção.

Ele já havia terminado a refeição quando ela se aproximou da mesa ao lado. Toca as rosas com reverência buscando uma simetria que descortine o ambiente. Ele se encanta com o jardim. O mosquito levanta vôo, decidido a pousar em uma das rosas. Ela não se atreve espantá-lo. Arrepia as asas e desaparece por entre longos lábios avermelhados. Ressurge das folhas e se instala em um espinho. Encarando-a de frente. Parecem se comunicar com incontestável clareza. O rapaz procura escutar o que lhe escapa. Suas bochechas volumosas coexistem em harmonia destituída de coerência com sua feição adulta.

Ainda segurando a faca termina o último gole de suco. O mosquito arremessa-se de volta ao seu braço. Seus óculos vacilam à beira do despencar, sua língua bóia na saliva armazenada. Uniforme enrugado sobre silhueta arredondada. Escancara a janela num barulho enferrujado. Oscila ao dia o braço nu como se acenasse em despedida. As asas do mosquito sacolejam maleáveis com o vento quente, dispersando-se em debandada pelo dia claro. Partículas de ar bombardeiam sua face virgem, abre a boca na ânsia de engolir algo que parece escoar como água por entre os dedos. Ruídos próximos e distantes acentuam o inusitado silêncio no interior do restaurante. Por um efêmero espaço de tempo os dois olham-se com exatidão. São incapazes de tolerar vontade anunciando comportas se abrindo. Ele se levanta para pagar a conta, ela fecha a janela antes que o gerente a importune. Poderiam ter sustentado o olhar agindo uma aproximação como se fossem igualmente capazes de ao menos tentar tolerar. Seriam?

Em dias arcaicos a jia salta. Partindo a película da água. Ar arranha-lhe rasgos por dentro e por fora. Devastada pelo desconhecido retorna imediatamente ao lar. De tempos em tempos brilho solar e relance de plenitude lhe impulsiona a ir e vir, num eterno retorno demandando assimilação orgânica às diferenças. Adaptação daquilo que círculo rompido em espiral aciona. Esfera ardente chamuscada de calor. Jia perpetuando-se em ininterruptas variações quase insustentáveis de tão irreversíveis até manter-se estendida na areia. Na pedra. O êxtase perante colossal beleza de paisagens jamais vistas é de uma potência capaz de contagiar-se além por todo e qualquer ser irrompido a partir deste salto. Sensação acendida persistindo-se intacta pela mais inalcançável fundura biológica. Tal como o brilho de uma estrela morta pode ser visto daqui da Terra. E mesmo depois do farol por fim consumido, este assombro de vida ainda pode ser recuperado, por exemplo, em uma foto. Assim sedução mútua prossegue transpondo película da água, Oceanos, Atmosfera terrestre, Universos com diferentes leis físicas. Nutrição indispensável ao escoamento que se eleva após ruptura.

A olhos nus o encontro se mantém ileso. Dia após dia. Até que certa noite, compactuando com os persistentes sinais, tanto ele como ela sonham com a mesma frase: de quantas formas o ser humano pode morrer? Quando ela termina de limpar a mesa ele ainda está no caixa. Vai até ele de mãos abanando. Com desmedido receio. Ele faz meia volta, parando de súbito com ela já bem ao seu lado. Ergue ambas as mãos entregando-lhe seu tremido número telefônico. Entreolham-se. Ela sorri. Ele também. Lá fora o dia ainda continua limpo e claro.


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